Durante muitos séculos, comunidades remanescentes de quilombos foram consideradas invisíveis num incentivo de um olhar colonizador. Bandeira (1988) nos traz a expressão invisibilidade expropriadora, no sentido de uma decisão tomada pelo branco, com a finalidade de alienar o negro de seus direitos legais à posse das terras. A pesquisadora Ilka Boaventura Leite (1966, p. 9) também afirma:
esquecidos pelas políticas públicas e pelas pesquisas científicas [...] ou porque
foram invisibilizados pelas várias formas de representação literária e política
ou porque foram segregados social e espacialmente, de modo a serem tratados
como não existentes.
A invisibilidade, por sua vez, poderá ter sido uma aliada diante de todas as limitações impostas pelo processo histórico que estes povos estiveram submetidos. Este pensamento também é apresentado por Carvalho (1997, p. 149‐151), quando afirma que:
perseguido pelos capitães do mato, para o quilombola o silêncio e a capacidade
de se tornar invisível era a possibilidade de manter‐se vivo e livre [...] tornar‐se
invisível foi, em inúmeros casos, uma posição política, uma atitude afirmativa
dos negros fugidos que lhes permitiu, além da sobrevivência, um caminho
próprio de subjetivação e tomada de consciência, [...] daí que a resistência negra
dos descendentes de quilombos brasileiros deveu dar‐se, principalmente,
através do heróico, porque voluntariamente doloroso, recurso da invisibilidade.
O Quilombo de Palmares, no Estado de Alagoas, resistiu por mais de cem anos, foi um dos mais duradouro e importante quilombo do Brasil. No entanto, muitos outros quilombos existiram por este país. Assim, os grupos que são considerados remanescentes de quilombos se constituíram por meio de uma grande variedade de processos, como as fugas e as ocupações de terras livres e isoladas, como também, por processos provenientes de:
heranças, doações, recebimento de terras como pagamento a serviços prestado
ao Estado, a simples permanência nas terras que ocupavam e cultivavam no
interior de grandes propriedades, bem como a compra de terras, tanto durante
a vigência do sistema escravocrata quanto após sua extinção (SCHMITT; TURATTI; CARVALHO, 2002, p.03).
As chamadas terras de quilombo é uma categoria territorial que expressa um reconhecimento jurídico e social, de formas tradicionais de territorialidades, relacionadas aos descendentes dos povos africanos aqui escravizados. Em geral, são comunidades negras rurais que realizam uma agricultura de subsistência, com fortes relações de parentesco e fortes vínculos de solidariedade, de vizinhança e de religiosidade (MACHADO, 2008).
Hoje, estes grupos de remanescentes de quilombos buscam sair da invisibilidade e conquistar o reconhecimento legal das terras ocupadas e cultivadas para moradia e para sustento, bem como, o livre exercício de suas práticas, suas crenças e seus valores (LEITE, 2000; MACHADO, 2008).
Um marco importante nesta luta foi a publicação do artigo 68, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal de 1988 que garantiu o direito a propriedade da terra a esses grupos sociais: aos remanescentes das comunidades de quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir‐lhes os títulos respectivos (BRASIL, 1988).
Entretanto, somente em 2003, o decreto federal 4.887 regulamentou o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos, instituindo uma série de políticas públicas para estas comunidades. De acordo com essa lei, os remanescentes das comunidades de quilombos são:
grupos étnico‐raciais, segundo critérios de autodefinição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida (BRASIL, 2003).
Atualmente, estima‐se que existam mais de 4.500 comunidades remanescentes no Brasil, tanto urbanas quanto rurais. E, até o momento, somente 1.418 delas foram certificadas pela Fundação Cultural Palmares (FCP)13 ligada ao Ministério da Cultura. Segundo a FCP, MT tem mais de 60 comunidades reconhecidas. (...) O reconhecimento destas comunidades é um processo dinâmico e reconhecemos que podem existir comunidades não registradas pela pesquisa. Assim, é relevante frisar que este estudo não se trata de um censo e nem mesmo de um levantamento exaustivo, mas de um panorama da situação atual, um retrato – ainda que temporário – das atuais Comunidades Quilombolas reconhecidas no Estado.
A espacialização atual das comunidades, se comparados com o estudo elaborado por Martiniano José da Silva (2003), intitulado Quilombos do Brasil Central: séculos XVIII E XIX (1719 ‐ 1888), demonstra que as localizações das atuais comunidades remanescentes no Estado coincidem com o registro histórico da localização dos antigos quilombos. No estudo, Silva (p. 67) ressalta que, até o ano de 1876, os escravos em MT estavam concentrados em nove localidades: Cuiabá, Poconé, Cáceres, MT (antiga Vila Bela), Diamantino, Rosário, Corumbá e Santana do Paranaíba (os dois últimos citados são municípios que hoje pertencem a Mato Grosso do Sul e que pertenciam a MT antes da divisão dos Estados).
Os grupos de escravos estavam absorvidos nas atividades canavieiras, produzindo açúcar e rapadura para abastecimento do mercado consumidor interno e externo, abrangendo a Bolívia e o Paraguai, comércio beneficiado após a abertura da navegação do rio Paraguai em 1872. Havia também os escravos urbanos que desenvolviam atividades domésticas e ofícios mecânicos.
A situação secular e marginal das comunidades quilombolas, efetivamente, no Estado ainda torna mais cruel quando identificamos que não há nenhuma terra de quilombo devidamente titulada. Pelo contrário, em sua maioria, estas comunidades vêm enfrentando um processo longo de conflitos ambientais centrados, essencialmente, nas disputas pelos seus territórios e na luta pelo reconhecimento de seus direitos.
Este fato nos evidencia questões emergenciais, como a necessidade de estudos que ofereçam múltiplos conhecimentos de cada comunidade que instiguem maiores empenhos dos setores responsáveis em acelerar os processos de identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação dos territórios quilombolas em MT. É nesta esperança que projetamos nosso estudo, esperando contribuir para a ampliação da visibilidade destes grupos, para que a elaboração de políticas públicas venha fortalecer a sustentabilidade e a luta dos povos quilombolas do Estado de MT.
Referência: SILVA, Regina Aparecida da. Do invisível ao visível: o mapeamento dos grupos sociais do estado de Mato Grosso - Brasil. São Carlos: UFscar, 2011.
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