Disputa por terra

O capital procede à desconstrução e à reconstrução permanente do território,

esvaziando-o de sentidos e de povos, conforme seus interesses.

Jean Pierre Leroy

A realidade da concentração de terra não se limita a algumas regiões, está presente em todo o Estado. O Censo agropecuário (IBGE, 2006) aponta MT como o segundo Estado em concentração de terras no Brasil. Para chegar a esta informação foi utilizado o Índice de Gini, que neste caso foi empregado para medir os contrastes na distribuição do uso da terra, no período intercensitário 1995-1996 a 2006. O Brasil apresenta alto grau de concentração, expresso por 0,856, em 1995, e por 0,872, em 2006. A distribuição de terras é mais concentrada quanto mais próximo este índice estiver da unidade, ou seja, poucos estabelecimentos agropecuários concentram um alto percentual de terras (p.111).

O índice de MT no ano de 2006 foi é de 0,865 (o primeiro Estado é Alagoas com índice de 0,871). O índice de Gini deriva-se de outro indicador denominado curva de Lorenz que mostra graficamente como a proporção acumulada de renda aumenta em função da proporção acumulada de população. O Gini foi proposto por Corrado Gini em 1914;  atualmente, é um dos índices mais referendados nos estudos sobre desigualdade de renda. A medida assume valor mínimo de 0 (zero), situação de igualdade perfeita da distribuição de rendimentos, o valor máximo de 1 (um) situa extrema desigualdade, em que um número mínimo de indivíduos ou famílias se apropria de toda renda disponível. Este índice nos mostra que para além do nível médio de renda, faz-se imperativo uma caracterização da forma como esta é distribuída (JANUZZI, 2003; SIMÃO, 2004).

Ainda segundo o IBGE (2006), é precisamente na intensa inserção das áreas de domínio do Bioma Cerrado, que a produção em grande escala de grãos, como a soja e o milho, além da expansão modernizada do algodão e da incorporação de áreas em direção à fronteira agropecuária ao norte de MT, vêm potencializando o processo de concentração agrária na região. Pode-se afirmar que a monocultura da soja ou do binômio soja-milho, além do algodão, fez por reforçar a desigualdade que marcava a propriedade da terra em uma região historicamente ocupada por uma pecuária ultraextensiva (IBGE, 2006, p.111).

Dados estatísticos deste censo revelam que em MT as propriedades acima de 2.500 ha, representam 3,35% dos estabelecimentos registrados no INCRA, ocupam 61,57% das áreas ocupadas pela agropecuária no Estado. Por outro lado, as pequenas propriedades, com menos de 10 ha, representam 13,38% dos estabelecimentos registrados e ocupam apenas 0,13% das terras cultiváveis (IBGE, 2006; WERNER, 2011a). Isso revela que extensas áreas de terras estão centradas nas mãos de uma minoria em detrimento de uma grande quantidade de pequenos produtores rurais com pouquíssimos espaços, conforme vimos no tópico anterior na região do Araguaia.

Toda essa concentração de terras foi (e ainda é) promovida com incentivo, consentimento e legitimação do Estado. Concordamos com David Harvey (2009, p.22) quando afirma que o Estado, com seu monopólio de violência e suas definições de legalidade, desempenha um papel crucial, tanto sustentando como promovendo estes processos.

A falta de demarcação de terras dos povos indígenas, quilombolas, retireiros, seringueiros, extrativistas, dentre outros grupos sociais, citadas em todas as RP, perpetua o cenário de desigualdades e de conflito, e evidenciam o caráter arbitrário dos sentidos hegemônicos que são atribuídos ao território (ZHOURI; ZUCARELLI, 2008, p. 03). Vale salientar que somente a demarcação da terra não é suficiente para assegurar a manutenção ecológica e social desses espaços é necessário avançar com políticas públicas que garantam a preservação dessas áreas e a dignidade dos grupos que as habitam.

Os casos de invasão de UC e TI para retirada de madeira e extração ilegal de minérios foram amplamente mencionados. Nessa lógica perversa de ocupação de territórios, vários exemplos são citados/denunciados nas entrevistas, como o caso da TI Kayabi, que disputa seu território com a mineradora internacional Obrascan e a Comunidade Quilombola Bela Cor, onde fazendeiros/latifundiários invadiram áreas dentro do quilombo já reconhecido pela Fundação Cultural Palmares. É também enfrentado pelos seringueiros da Resex Guariba & Roosevelt. A disputa por território é também vivida pelos pantaneiros. 

Os assentados também disputam arduamente o território em MT.  De acordo com Silva (2011, p.118) ao todo, temos 405 projetos de assentamentos oficializados pelo INCRA-MT.  Há também alguns projetos que foram implantados pelo Instituto de Terras de Mato Grosso (INTERMAT).

Se a luta dos assentados é árdua, a dos acampados consegue ser ainda mais complicada. Os acampamentos na beira das estradas, símbolo da luta pela terra e revolução agrária no Brasil, também expressam o descaso e a morosidade do processo de assentamento realizado pelo INCRA. MT apresenta 144 acampamentos com 14.832 famílias apoiados por diversas organizações. A realidade dos acampamentos é complexa e difícil, estão em constante mudança provocada por ações de despejos, lentidão dos processos e oportunidades de trabalho, alguns acampamentos em MT resistem há 11 anos (SARDINHA, 2011).

Os povos indígenas também são fortemente atingidos pela disputa territorial, sofrem com a morosidade na demarcação de suas terras, ainda há vários povos que estão sem suas terras demarcadas e garantidas como prevê a Constituição Federal de 1988. Um exemplo dessa luta é vivido pelo povo Bororo na TI Jarudori, com muita violência os Bororo sofrem desde que começaram a retomada da terra em 2006. O território de Jarudori está invadido por fazendeiros, além dos latifundiários, existem várias famílias nos vilarejos (CIMI, 2011).  Diante disto, podemos notar o quanto é recorrente a disputa por terra em MT.

Persiste a lógica capitalista de uma ocupação e uso do território mato-grossense que reforçam a desigualdade socioambiental, em que os grandes produtores e empresários são sempre beneficiados pelas ações de governo. Para Bourdieu (1997, p. 164), a capacidade de dominar o espaço, sobretudo, apropriando-se (material ou simbolicamente) de bens raros (públicos ou privados) que se encontram distribuídos, depende do capital que se possui. Segundo o autor, o capital permite manter a distância as pessoas e as coisas indesejáveis ao mesmo tempo aproxima-se de pessoas e coisas desejáveis. Inversamente, os que não possuem capital são mantidos a distância, seja física ou simbolicamente dos bens naturais e sociais mais raros.

Exemplos dessa situação de dominação dos bens naturais e sociais exercida pelo capital foram, insistentemente, citados pelos entrevistados desta pesquisa. Mas, de todos os GT, os povos quilombolas foram o que mais abordaram a luta desencadeada pelas disputas territoriais. Podemos assegurar que este é o grande mote dos conflitos vividos por este grupo social, e por tantos outros que buscam, por meio da demarcação da terra, a garantia de sobrevivência e manutenção de seu modo de vida. De tal maneira, que consideramos relevante apresentar com mais tenacidade os conflitos pela terra encarados por este grupo social.

Ressaltamos que, situamos os conflitos por terras a partir das dimensões políticas, socioeconômicas e culturais. Os conflitos relacionados a disputas pelos elementos naturais são também, de certo modo, disputas por terras, pois é sobre esse espaço físico que os elementos se encontram.

 

Referência: JABER-SILVA, Michelle T. O mapeamento dos conflitos socioambientais de Mato Grosso: denunciando injustiças ambientais e anunciando táticas de resistência. São Carlos: UFScar, 2012. Disponível em: .

 

 

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