Disputa por água

A água não será a razão das guerras futuras,

mas, sim, está sendo objeto de uma guerra atual.

Porto-Gonçalves

 

A segunda causa propulsora dos conflitos socioambientais em MT (ficando atrás da disputa pela terra) relaciona-se a uma diversidade de lutas na disputa pela água, que representa 26,75% do universo das causas apontadas pelos grupos sociais. Esses conflitos são ações de resistência, em geral coletivas, que se apresentam de amplas formas, dentre as mais citadas estão: assoreamento dos rios e áreas degradadas; pesca e turismo predatórios; poluição hídrica – esgoto e efluentes químicos; instalação de PCH, UHE e hidrovia e dominação particular e invasão de áreas com acesso à água (ou seja, a privatização).

Os choques provocados nas disputas por este elemento são cada vez mais frequentes e tendem a se acentuarem no contexto de escassez e controle estabelecido nas relações de poder assimétricas que caracterizam o mundo contemporâneo. A dominação dos corpos dágua se inscreve como fundamental para qualquer atividade.

O uso das águas geram conflitos em razão da multiplicidade de valores e finalidades conferidas a este elemento. Uma terminologia que vem ganhando espaço nos debates sobre a utilização mercadológica das águas é o hidronegócio, que, segundo Malvezzi (2005), não é apenas um neologismo, a palavra tem a inspiração no agronegócio. É a necessidade de criar uma expressão que abrigue todos os tipos de negócios que hoje surgem a partir da água e que é conduzido de forma imposta e arbitrária como o agronegócio.

Considerada o ouro azul por representar um mercado lucrativo e promissor é dominada pelo hidronegócio, e tem sido transformada em um bem econômico por uma visão mercantilista que aprisiona este elemento ao conceito de recurso hídrico, que gera riquezas e se torna essencial para os planos ambiciosos de desenvolvimento; seja na irrigação de grandes áreas, na construção de empreendimentos para viabilizar a produção de energia, no abastecimento dos centros urbanos e industriais, no escoamento da produção agrícola e, mais recentemente, nas atividades turísticas. 

Para além de um recurso hídrico, a água encerra uma infinidade de valores que jamais podem ser taxiados pelo valor do mercado. [...] Tem todas as cores, sabores e odores que operam na sensibilidade imaginária ampliando nossa realidade (SATO, 2005, p.15). Para esta autora, a cosmologia indígena, bem como mitos e lendas da sabedoria popular revelam que a água agrega valores da vida cotidiana, e, simbolicamente, carrega várias interpretações bastante próximas às descobertas científicas da sociedade contemporânea.

Diante do exposto, nossa opção é por utilizar a palavra água e não recursos hídricos, a palavra recurso é associada ao valor econômico. Escolhemos atribuir a este elemento o valor da vida e não do mercado. O descompasso entre a concepção que confere apenas o valor econômico a este elemento e a outra que atribui valores simbólicos tem gerado inúmeros conflitos, principalmente no que tange o enfrentamento da concentração de riqueza e poder nas mãos dos grandes consumidores de água; e na exclusão dos grupos sociais tanto no acesso à água quanto nas tomadas de decisão sobre as demandas, usos e conservação deste bem vital.

Com 13,8% das águas doces do planeta, o Brasil é considerado um país rico, devido à abundância deste elemento. Além dos caudalosos rios, contamos com fartas águas subterrâneas e somos o único país de dimensões continentais em que chove sobre todo o território nacional. Por razões óbvias as águas brasileiras são objeto de cobiça nacional e internacional (MALVEZZI, 2005). Todavia, nosso cuidado ambiental com esse valioso elemento é desproporcional a esse privilégio e esta concepção de abundância da água tem trazido prejuízos incalculáveis, pois, além da questão do alto desperdício, a água não está acessível a toda a população.

Petrella (2003) afirma que existe uma ideia generalizada que o crescimento demográfico é um dos fatores que está levando à redução das reservas hídricas mundiais. Segundo este autor, esta é uma posição simplista, é verdade que a água está escasseando, mas o motivo principal é o modelo atual de utilização da água, que é absolutamente insustentável. Exemplo disso são a agricultura extensiva e a produção industrial que absorvem enormes quantidades de água.

Com a política de incentivo à exportação, os custos do uso das águas, na maioria das vezes, não são computados na produção de bens de consumo. Quando se exporta soja, milho, alumínio e papel, há muita água sob a forma de grão que não estão inseridos no valor do produto, essa não computação dos preços gera as chamadas externalidades. Malvezzi (2005) enfatiza que no Brasil a irrigação está voltada para a produção de grãos, frutas para exportação, mas também da cana irrigada para produção de álcool e açúcar. Produzir grãos em território alheio é poupar água no próprio território. De acordo com o autor citado, as técnicas pesadas como pivôs centrais, irrigação por sulco, consomem ainda mais água que a microaspersão.

A humanidade terá que rever seu consumo de água para irrigação. Não existe água para que esse modelo de produção continue ao infinito. Por exemplo, 1 quilo de soja produzida exige 1.000 litros de água, 1 quilo de frango exige 2.000 litros e 1  quilo de carne de boi são necessários 20.000 litros (MALVEZZI, 2005). Isto significa que, quando o País exporta grãos e carnes, está também exportando grande quantidade de água. No entanto, para uma grande maioria de cidadãos mato-grossenses esses números não são considerados alarmantes e o discurso de escassez não sensibiliza, devido a equivocada ideia de abundância.

As externalidades, na teoria econômica, são danos causados por algumas atividades a terceiros, sem que esses danos sejam incorporados no sistema de preços (ACSERALD, 1994, p. 129). Podemos citar, como exemplo, a poluição das águas por agrotóxicos, mercúrio e chumbo que levam à deterioração da flora e da fauna, assim como da qualidade de vida dos seres humanos. Em outras palavras, os danos acarretados à natureza e às populações atingidas, não são computados no sistema de preços desses produtos agrícolas e, muito menos, compensados.

Considerado divisor de águas, o Estado encontra-se em posição de destaque em relação aos bens hídricos, uma vez que o complexo de águas mato-grossenses congrega três regiões hidrográficas brasileiras: a Região Hidrográfica do Paraguai, com área de 176.800 km2, que abrange 19,6% da superfície estadual; a Região Hidrográfica Amazônica, com 92.382 km2, que ocupa 65,7% do território; e a região Tocantins-Araguaia, com 132.238 km2, que corresponde a 14,7% da superfície do Estado (BRASIL, 2006).  Além disso, uma grande porção das bacias da região Centro-Oeste tem suas nascentes em terras mato-grossenses. Essas características, por si só, já seriam suficientes para se dedicar atenção especial ao Estado quanto à água.

Entre a abundância e a escassez o que ganha relevo é a injustiça ambiental em MT, pois, embora sendo um Estado rico em água, a mesma não está acessível a todos os cidadãos. Existem diversos assentamentos de pequenos produtores rurais, comunidades quilombolas e pantaneiras que convivem com sérios problemas de disponibilidade de água potável. A água existe, mas não está distribuída de forma equitativa para os grupos sociais, está, muitas vezes, centrada nas mãos de poucos, formando assim uma trama de relações e interesses que vincula os conflitos que permeiam a dominação das terras aos conflitos da privatização das águas.

Compreender que água é um meio de produção tão indispensável quanto a terra é essencial. Essa dura realidade da escassez de água é deparada também em várias localidades do mundo, segundo o Relatório de Desenvolvimento Humano (PNUD, 2011), cerca de 1,1 bilhões de pessoas já não têm acesso à água potável, quadro que só tende a se agravar. De acordo com este Relatório as pessoas mais desfavorecidas suportam um duplo fardo de privação. Para além de serem mais vulneráveis aos efeitos vastos da degradação ambiental, fazem face também às ameaças ao seu ambiente provocadas pela poluição do ar, da água contaminada e do saneamento deficiente, reforçando assim cenários de injustiças ambientais por todo o globo.

É fato também que, a escolha dos locais de instalação dos empreendimentos impactantes, está estritamente ligada a uma questão de injustiça ambiental. O capital comumente escolhe espaço em que a rentabilidade possa ser maior e instala-se em áreas habitadas por populações de baixa renda que terão mais dificuldades em recorrer aos seus direitos. Concordamos com Carneiro (2005, p. 37), quando nos afirma que a dinâmica da distribuição espacial da degradação ambiental é presidida, portanto, pela lógica da rentabilidade que rege a economia mundial de acumulação de riqueza. Este autor cita um exemplo bastante ilustrativo desta questão, o depoimento do economista do Banco Mundial Lawrence Summers, que defende a localização das atividades que causam maiores impactos ambientais nos países pobres, afirmando que, sendo os salários mais baixos nesses países menores, serão também os custos de dias pagos e não trabalhados por motivo de adoecimento dos trabalhadores em razão da deterioração ambiental provocada pela atividade da empresa.

Em várias localidades os conflitos vêm se acentuando em virtude dessa discriminação e imposição do capital na escolha desses locais. Segundo as informações da CPT (2011), neste ano houve um crescimento de 93% de conflitos em função do uso da água no Brasil. Em MT, outra causa pulsante dos conflitos são as propostas de instalação de hidrovias citadas pelos grupos sociais presentes no Pantanal, impactados pela proposta da hidrovia Paraguai-Paraná, e pelos grupos do Araguaia, afetados pela proposta da hidrovia Araguaia-Tocantins.

As tentativas de privatizarem as águas mato-grossenses são inúmeras. Com o intuito de restringirem o acesso e o uso dos corpos dágua em MT, ganham destaques as PCH e UHE que vêm proliferando em várias RP. As regiões que mais apresentaram essa questão como um grave problema e uma fonte motivadora de conflitos são as RP 03 e 07. Como essa questão é extremamente pulsante consideramos importante abordá-la com mais profundidade.

 

A geração de energia hídrica e os impactos socioambientais

 

As instalações dos empreendimentos como as PCH e as UHE reforçam as situações de injustiças ambientais, instigam a violência e as expropriações dos territórios dos grupos sociais de MT. No acirramento das disputas das relações de poder assimétricas estabelecidas nestas esferas podemos compreender os conflitos socioambientais como um reflexo do modelo econômico impositivo vigente.

A geração de energia por meio das hidrelétricas ocupa 11,3% da matriz energética de MT (SICME, 2008). Essa fonte de energia tem sido considerada uma alternativa energética limpa (quando comparadas com as termelétricas), no entanto, com frequência os empreendimentos hidrelétricos têm se revelado insustentáveis do ponto de vista ambiental e social. Esses projetos não geram apenas energia, mas também uma série de efeitos perversos. Com o desenrolar do PAC as hidrelétricas estão pulverizando o território brasileiro, o governo prevê até 2020 a construção de 24 UHE.  Apenas para a região da Grande Amazônia o governo apresentou 19 projetos e em MT um dos mais recentes empreendimentos, ainda em fase de construção, é a usina de Colíder, situada no rio Teles Pires (ANEEL, 2011).

De acordo com Rossi (2011), o Estado de MT tem 148 PCH situadas nas bacias do Paraguai, Amazônica, Tocantins-Araguaia, sendo que: 54 estão em operação; 33 em fase de implantação; 25 aguardando início das obras; 27 em estudo; e, 9 com a construção parada. Acumulamos em MT o título de ser o segundo Estado brasileiro com maior quantidade de PCH (que produzem energia até 30 megawatts). Para citar como exemplo, a Bacia do Paraguai, formadora do Pantanal, tem 24 pequenas hidrelétricas em operação.

A opção em gerar energia com pequenas centrais justifica-se pelas inúmeras vantagens legais para o licenciamento ambiental desse tipo de empreendimento, a principal delas é a não necessidade de se realizar Estudos de Impactos Ambientais (EIA), o que é exigido no caso de UHE, facilitando dessa forma a sua implantação; esses fatores têm levado inúmeras empresas a optarem pela construção de várias PCH em série, em vez de uma grande hidrelétrica. Entretanto, os impactos cumulativos provocados pela instalação de diversas PCH em um mesmo rio são, muitas vezes, tão ou mais intensos que os gerados pelas UHE.

Causadores de grandes impactos ecológicos e sociais, como destruição de habitats, extinção de espécies, diminuição de populações de peixes; ou ainda, por meio dos impactos sociais na área de alagamento e a jusante onde moradores dependem do ciclo natural das águas para sobreviver (CASTRILLON et al., 2006). Com a instalação desses empreendimentos os grupos sociais atingidos não só perdem a base material da vida – o território, as condições ambientais que favorecem o seu modo de produção, perdem também a cultura, perdem o modus vivendi.

Para o ictiologista Lima (2009) as hidrelétricas significam perdas inevitáveis de diversidade. Construí-las, funciona como desmatar uma floresta. As espécies que ficam são apenas uma fração das que foram dizimadas. Em uma pesquisa desenvolvida no rio Culuene, na bacia do Xingu, o pesquisador afirma que foram encontrados 30 mil exemplares de peixes e ainda falta catalogar até seis novas espécies.

Nesse rio, distante a cerca de 50 km de aldeias da etnia Xavante, está instalada a PCH Paranatinga II, de aproximadamente 29 mil quilowatts, entre os municípios de Paranatinga e Campinápolis. Essa PCH tem onerado significativamente o ecossistema local e a vida desse povo. No plano mais explícito desses impactos observa-se uma maior dependência dessa etnia dos peixes do rio Culuene uma vez que a caça está se tornando escassa. O local destinado à construção da hidrelétrica é considerado sagrado para os índios, pois nele teria nascido o Quarup, a maior celebração religiosa da tradição Xingu, um ritual em homenagem aos seus mortos. Apesar de ações impetradas pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI) e pelo Ministério Público Federal (MPF), a PCH entrou em operação (CASTRILLON et al., 2006).

Além de causar inúmeros danos ambientais e sociais, a energia hídrica é um forte braço do hidronegócio, o que significa dizer que está ancorada na proposta desenvolvimentista que visa o lucro imediato e não se compromete com os riscos associados à instalação do empreendimento. Há um grande ramo de empreiteiras, técnicos, indústrias, empresas geradoras e distribuidoras de energia elétrica que se beneficiam com esse tipo de atividade. O discurso da necessidade de gerar energia ancora-se na própria necessidade das grandes empresas destinadas à exportação que são as grandes consumidoras da energia elétrica gerada no País e em MT. Esses projetos estão também vinculados ao agronegócio, pois, para viabilizar sua produção faz-se necessário uma gama de investimentos em apoio logístico como rodovias e hidrovias, assim como na infraestrutura energética.

Um local de intenso conflito na instalação de empreendimentos de energia hídrica é o caso do Aproveitamento Hidroelétrico (AHE) Dardanelos, usina que produziria 261 MW através do aproveitamento do rio Aripuanã, na grande queda natural denominada Salto de Dardanelos. O rio Aripuanã é conhecido pela quantidade e diversidade de peixes e anfíbios, além disso, pela beleza cênica de suas quedas dágua como a cachoeira de Dardanelos e das Andorinhas. Mesmo com inúmeros questionamentos dos MPE e MPF, a Sema concedeu a licença ambiental, e, em meados de 2006, a AHE Dardanelos foi a leilão. Essa AHE foi construída sobre cemitério do povo Arara do Rio Branco, em porção que ficou fora da demarcação. Esta hidrelétrica atingiu este povo e o povo Cinta Larga, que habita a mesma região.

A TI Kaybi é palco de recentes conflitos socioambientais relacionados a esta questão, neste território um grupo de indígenas das etnias Kayabi, Munduruku e Kayapó mantiveram, no mês de outubro de 2011, dois funcionários da Empresa de Pesquisa Energética (EPE) e cinco representantes da FUNAI reféns por quase uma semana na aldeia Kururuzinho; o protesto ocorreu por reivindicação junto ao governo federal para o andamento do processo de ampliação da TI Kayabi e a suspensão da instalação da UHE São Manoel, que está prevista para ser construída na divisa entre os Estados de MT e Pará, no rio Teles Pires, que irá afetar as etnias Kayabi e Munduruku.

A pauta mais requerida pelos indígenas era o diálogo, sempre negado e negligenciado pelos tomadores de decisão. Conforme assinala Freire (1987, p. 92), dizer a palavra - (diálogo) é um direito de todos os homens. O diálogo é o caminho pelo qual os homens ganham significação enquanto homens. Esse acontecimento elucida como a incapacidade de diálogo das esferas públicas, somada à imposição de projetos de interesses desenvolvimentistas contribui para que grupos sociais se percebam alijados dos processos, induzindo a situações críticas e conflituosas como essa.

A insubordinação dos grupos sociais à mercantilização e à privatização das águas vem se tornando cada vez mais frequentes em MT, entretanto, são engolidas e tragadas pela truculenta e antidemocrática forma que os projetos são conduzidos, como constatado no caso citado acima encarados pelo povo indígena Kayabi. A instalação desses empreendimentos, sem a consulta aos povos indígenas, trai o direito estabelecido pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário.

A espoliação vivida pela etnia Enawene-nawe, é outro lastimável exemplo do funcionamento do hidronegócio, encarando um forte conflito contra a instalação do Complexo Hidrelétrico do Juruena (denominação dada a uma sequência de usinas hidrelétricas e pequenas centrais hidrelétricas previstas para serem implantadas) em pontos localizados entre as cabeceiras do rio Juruena e sua confluência com o rio Juína, numa extensão de 287,05 Km.   Este complexo vem sendo instalado sem a consulta e a concordância deste povo que depende totalmente do rio Juruena que abastece toda a TI Enawene-nawe, comprometendo o ambiente e o modo de vida desta etnia, que tem 90% da base de sua alimentação composta por peixe. A antropóloga Almeida (2011) assevera que o Yaõkwa, cerimonial indígena do povo Enawene Nawe reconhecido como Patrimônio Imaterial da Cultura Brasileira, está comprometido com a instalação deste empreendimento, pois o cerimonial é completamente associado à pesca.

Desde 2009, os Enawene Nawe estão sofrendo com a baixa pesqueira no rio Juruena. Suas pescarias tradicionais têm obtido um resultado muito aquém das grandes quantidades de pescado obtidas anualmente por este povo, antes do início das obras do Complexo Juruena.

Nas últimas pescarias o peixe não tem vindo, e sem condições para obter o recurso pesqueiro através das técnicas tradicionais, os Enawene Nawe têm sido obrigados a comprar peixe de tanque para suprir a demanda alimentar do seu povo, situação que gera dependência, posto que para comprar o peixe são necessárias altas quantias de recursos financeiros, e insegurança alimentar, já que o modo de subsistência dessa população ficou ameaçado com a diminuição do pescado no Juruena (ALMEIDA, 2009, p. 30).

 O MPF instaurou um procedimento administrativo para verificar as circunstâncias do licenciamento ambiental deste complexo hidrelétrico.  As ações do MPF no sentido de barrar as construções destas centrais, seja pela ausência de estudos detalhados sobre os impactos, seja pelos prejuízos que estas causariam para os povos indígenas da região, foram derrubadas pelo Supremo Tribunal Federal, que alegou interesse público. Algumas destas centrais são, em 2011, objeto de uma Comissão Parlamentar de Inquérito na AL-MT, que apura as licenças ambientais concedidas ao grupo empresarial do então governador Blairo Maggi, que hoje ocupa uma cadeira no Senado Federal. No entanto, recentemente, esta comissão foi encerrada sem apresentar os devidos esclarecimentos pelo qual ela foi formada.

 A UHE Manso é outro exemplo emblemático dos conflitos que engendram a luta pelo território e pela água. Localizada no município de Chapada dos Guimarães, sendo instalada no rio Manso - principal afluente do rio Cuiabá (LEROY, 2005). Este é um empreendimento da empresa estatal Furnas Centrais Elétricas S/A, com o represamento foi formado um lago de 427 km2. Apesar do grande reservatório, segundo dados de Furnas, a usina tem capacidade de geração de até 212 megawats (MW), no entanto, ela produz de forma fixa apenas 97 MW de energia, ou o equivalente a três PCH com represamento de até cem vezes menor. Os impactos ambientais produzidos pela barragem vêm sendo denunciados por ecologistas e pesquisadores desde a construção da obra, tanto pelas mudanças no sistema de inundação do Pantanal, quanto pela destruição de habitats, extinção de espécies e diminuição das populações de peixe.

A região alagada era ocupada, predominantemente, por agricultores familiares, que desde o século XIX, desenvolveram na região formas tradicionais de produção econômica e reprodução sociocultural, conformadas pelas características naturais do território (LEROY, 2005). A UHE Manso atingiu 1.065 famílias, de 18 comunidades, sendo que apenas 422 foram indenizadas e/ou incluídas no plano de mitigação (MAB, 2005). As populações ribeirinhas atingidas pelas obras foram desconsideradas frente à perspectiva do lucro desta mega obra. A perda irreversível de seus territórios e de suas áreas de produção e reprodução social acarretou em vários problemas sociais.

As narrativas dos atingidos pela barragem do MAB, presentes no seminário, afirmam que a população foi retirada das áreas úmidas do vale para ser reassentada  no Cerrado, em terrenos constituídos por 90% de areia, sem nenhuma consideração por seu modo tradicional  de vida. Outros problemas relatados foram a falta de qualidade de vida, o tamanho dos reassentamentos e a falta de água potável. Ainda em 2001, apenas algumas famílias conseguiram ser reassentadas e poucas, atualmente, conseguem produzir alimentos.

A dominação dos territórios e de seus bens naturais (as florestas, as águas, as áreas de cultivo) busca a qualquer custo exterminar a identidade sociocultural, tentando fazer desses grupos uma massa que tende à uniformidade, desenraizada de sua história e de seu território, sem perspectiv (LEROY, 2010, p. 31). Entretanto, esta dominação encontra a insubordinação desses grupos, que apostam no enfrentamento e na resistência como uma maneira de continuar vivendo com dignidade.

Além das ameaças frente às privatizações desse bem público, as águas neste Estado também enfrentam o descaso em relação a lançamento de efluentes, assim como no assoreamento dos rios provocado principalmente pelo desmatamento das matas ripárias. O assoreamento dos rios é ainda provocado pelas barcaças que seguem pelos rios degradando as APP. São considerados graves os impactos ambientais que afetam a qualidade do ambiente e da vida social dos grupos sociais mato-grossenses. Essa parece ser uma realidade que afeta muitos municípios brasileiros. De acordo com o IBGE (2002), a causa mais apontada por 53% dos gestores dos 5.560 municípios do Brasil como a que mais afetava o meio ambiente municipal, é o assoreamento.

 

A contaminação das águas por lançamento de efluentes químicos e orgânicos é mais uma das severas inquietações dos grupos sociais de MT.  De acordo com a SEMA (2009), no PERH-MT, dos 141 municípios apenas 16 possuem algum tipo de tratamento dos efluentes sanitários.

 

Segundo Lacerda e Malm (2008, p. 173), podemos dividir os poluentes que mais causam danos aos ecossistemas aquáticos em dois grandes grupos. O primeiro inclui substâncias presentes nos efluentes associados à disposição imprópria de resíduos sólidos (lixo) e ao tratamento inadequado ou inexistente de esgoto sanitário. O segundo grupo, composto pelos poluentes de origem industrial e da mineração, inclui substâncias tóxicas, como metais, gases de efeito estufa e poluentes orgânicos.

 

As narrativas feitas durante os mapeamentos  enfatizam que o Pantanal é o bioma mais atingido por esse tipo de contaminação. Pois, como já abordado, este bioma recebe uma grande quantidade de material sólido das áreas de planalto, além disso, torna-se receptáculo de resíduos como agrotóxicos, mercúrio, vinhoto e outros resíduos contaminantes. Nesse cenário, podemos citar como um exemplo dos impactos socioambientais advindos da contaminação dos rios a comunidade pantaneira de São Pedro de Joselândia, um dos lócus de investigação empírica desta pesquisa.

Referência: JABER-SILVA, Michelle T. O mapeamento dos conflitos socioambientais de Mato Grosso: denunciando injustiças ambientais e anunciando táticas de resistência. São Carlos: UFScar, 2012. Disponível em: <https://onedrive.live.com/authkey=%21AOeXyifHVmXtuq0&cid=6F738C9CF42A30B0&id=6F738C9CF42A30B0%212176&parId=6F738C9CF42A30B0%214077&o=OneUp>.

Mapa


Veja o mapa completo